Desde que entrou na Bahia em agosto de 1928, até o fim da sua vida na Grota de Angico em Sergipe, em julho 1938, Lampião transitou pelo município de Curaçá como se estivesse em casa. Ao longo desse tempo ele se divertiu e assombrou, fez caridades e atrocidades, foi justo e injusto, afável e violento, enfim, foi verdadeiramente o homem e as suas circunstâncias. O estado de espírito e as conveniências do momento ditavam o seu comportamento a cada dia, parecendo, às vezes, que era vários homens num só.
Um episódio em particular fez com que fosse lembrado pelos curaçaenses, mesmo décadas depois da sua morte. A bem da verdade, foi menos pelo que fez, do que pela maldade do povo de Curaçá com o drama de um conterrâneo.
Estava acontecendo umas Rodas de São Gonçalo na Fazenda Riacho do Boi quando Lampião chegou com o seu grupo. Respeitosamente tirou o chapéu e postou-se contrito ao lado do altar do Santo festejado até o ato final das Rodas, quando os tocadores e os dançadores entoaram o canto de despedida: “adeus, adeus São Gonçalo, até o ano que vem. Se a morte não me matar, se Deus quiser e eu também”. Ainda cantando, beijaram respeitosamente os pés da imagem de São Gonçalo que estava nas mãos do dono da promessa.
Entre os presentes naquelas Rodas de São Gonçalo estava um jovem de pouca estatura e grande animação. O baixinho Domingos dos Santos ou Dominguinho, por uma inexplicável razão até dançava, mas jamais beijava os pés do santo no final. Alguém informou esse fato a Lampião que logo fez valer a sua autoridade.
– Chame ele aqui – ordenou. Ato continuo Dominguinho chegou sem demonstrar assombro.
– Eu soube que você não “beja” os pé do Santo, cabra? – disse muito sério o Capitão Cangaceiro.
– “Bejo” não, seu Capitão.
– Por quê? – inquiriu Lampião.
– Porque não quero – foi a resposta seca de Dominguinho.
– Pois hoje você vai ” “bejar” – disse Lampião com firmeza na voz.
– Num “bejo” – desafiou Dominguinho.
Lampião puxou o longo punhal da cintura, encostou a ponta no pescoço de Dominguinho e foi empurrando ele pra junto da imagem do santo, até parar a poucos centímetros dela.
– “Beje” o Santo, Dominguinho – ordenou.
– Num disse que num “bejo”- retrucou o baixinho.
O temido cangaceiro foi pressionando o punhal e falando com firmeza:
-“Beje” o Santo Dominguinho.
-Num ” bejo”.
Alguns centímetros de lâmina já tinham penetrado no pescoço do teimoso e ele a responder com firmeza:
– Num “bejo”.
Já sem paciência, Lampião empurrou o punhal com mais vigor.
Sentindo a lâmina penetrar e com ela a aproximação da morte, Dominguinho olhou para o Santo e disse:
– Tá danado! “Bejo” já!
Outra pressão mais forte do punhal e finalmente o beijo nos pés do Santo.
Lampião sorriu e Dominguinho carregou com revolta, a partir daquele momento e até o último dia da sua vida o injusto nome de: Dominguinho Beija Santo.
Por Omar Torres, popular Babá
Administrador e Memorialista curaçaense